À esquerda das Forças Armadas brasileiras:
histórias de vida de militares perseguidos e anistiados
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À Esquerda das Forças Armadas Brasileiras: Histórias de Vida de Militares Perseguidos e Anistiados Políticos é uma coleção de cinco volumes que traz à luz 23 narrativas biográficas histórico-literárias de militares de esquerda. Organizada pela historiadora e professora da UFABC, Andrea Paula S. O. Kamensky, a obra conta com a contribuição de nomes como José Carlos Sebe Bom Meihy (USP) e Silvio Tendler, cineasta e diretor do documentário Militares da Democracia. A coleção explora as vivências desses militares dentro e fora das instituições castrenses, destacando suas perspectivas legalistas, socialistas e comunistas frente aos desafios políticos do século XX.
A coleção se posiciona como um contraponto à historiografia tradicional e à grande mídia que, frequentemente, oferecem uma visão limitada sobre a polarização política no meio militar. Com uma abordagem inovadora, os volumes documentam tanto o processo de pesquisa quanto as reflexões dos estudiosos sobre temas-chave, incluindo os bastidores da produção do filme Militares da Democracia. Cada biografia é construída como uma obra de literatura histórica não ficcional, enfrentando a fragmentação documental e o apagamento histórico.


À esquerda das Forças Armadas brasileiras
Livro 1
A historiadora e escritora Andrea Paula S. O. Kamensky, organizadora da coleção de livros, narra e reflete sobre os mais de trinta anos de pesquisas com militares de esquerda, iniciadas pelo historiador José Carlos Sebe Bom Meihy, amigo do cineasta Silvio Tendler, realizador de inúmeros documentários que marcaram as mobilizações por democracia na história contemporânea brasileira.
Ao quebrar com a suposta distância de textos acadêmicos oniscientes, Andrea Paula explica detalhadamente (em diálogo com variadas fontes teóricas e metodológicas) o que aprendeu com os mais velhos e suas próprias descobertas ao fazer o trabalho de campo – quando ainda era uma jovem estudante – com histórias de vida em diálogos transdisciplinares entre história, antropologia e literatura para a criação de narrativas biográficas histórico-literárias desde aquela época, no final do século XX, até os dias atuais.
As biografias e as subjetividades entrelaçadas de pesquisadores e colaboradores entrevistados atravessam toda a escritura literária e histórica, se contrapondo a pressupostos e práticas da história oficial. Nesse sentido, emergem as preocupações com as demandas e as questões do tempo presente e imediato como ponto de partida para repensar e recriar passados-presentes-futuros em horizontes democráticos possíveis.
Desse modo, pesquisadores e colaboradores entrevistados materializam em documentos histórico-literários cocriados – com foco no narrar do cotidiano de anos de opressões e lutas por justiça e reparação – a busca pela garantia ao direito à memória e à história em uma democracia precária e incompleta.
Para abrir toda a coleção de livros, com sensibilidade e espírito transdisciplinar, a poeta, escritora e crítica literária Nathaly Felipe Ferreira Alves faz uma belíssima apresentação da coleção de livros, destacando em cada um deles as possibilidades das heterotopias da memória encarnada construídas no imbricamento orgânico e rizomático da história com a literatura.

À esquerda das Forças Armadas brasileiras
Livro 2
Neste livro, a partir de sete histórias de vida gravadas por Andrea Paula S. O. Kamensky e José Carlos S. B. Meihy, entramos todo um panorama histórico da participação militar de esquerda nas primeiras décadas do século XX. Anthero de Almeida (falecido em 2014, aos 108 anos) falou do cotidiano sob o Tenentismo, a Revolução de 30, e o Levante Comunista de 1935, entre outros fatos que testemunhou no início do século XX. José Gutman, um dos líderes do Levante de 35 quando tinha apenas 21 anos, destacou, entre outras experiências, a vida cultural na prisão daqueles que foram capturados por causa da atuação política ao lado do líder tenentista e comunista Luís Carlos Prestes, na Aliança Nacional Libertadora. Gutman narra sua participação na rádio comunitária do presídio, lembrando de músicas que faziam paródias críticas sobre o Estado Novo. O colaborador recorda que, durante este regime autoritário, Olga Benário foi deportada para os campos de concentração nazistas.
José Correia de Sá, Homero de Castro Jobim, Nelson de Souza Alves, Delcy Silveira e Apolônio de Carvalho narraram em detalhe a participação no Levante de 1935, como militares de esquerda. Os colaboradores também mencionaram o posterior engajamento nas Brigadas Internacionais em defesa da República contra o franquismo na Guerra Civil Espanhola, considerada antessala da Segunda Guerra Mundial.
A narrativa biográfica de Apolônio de Carvalho também aborda a luta na Resistência Francesa durante a Segunda Guerra Mundial, pela qual foi condecorado como herói de guerra na Europa. Mas, no Brasil, foi considerado perigoso comunista e terrorista por ter enfrentado a ditadura militar depois do golpe de 64, quando foi preso e torturado, sobrevivendo apenas porque foi trocado por um dos embaixadores sequestrados por guerrilheiros da luta armada contra o regime autoritário.
Assim como seis dos militares citados anteriormente, Apolônio de Carvalho foi membro do Partido Comunista do Brasil (PCB) desde a década de 1930. Também foi fundador do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR) com Mário Alves (assassinado no regime militar e considerado desaparecido político, pois seu corpo nunca foi encontrado) e Jacob Gorender (famoso escritor e soldado da Força Expedicionária Brasileira, FEB, na Segunda Guerra Mundial, outro entrevistado, cuja narrativa está no Livro 3), em 1968. Por fim, foi um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores, em 1980, ao lado do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Todos os militares de esquerda entrevistados, o primeiro socialista e os outros seis comunistas, jovens da década de 1930, uniram-se em resistência aos regimes de exceção do Estado Novo e da ditadura militar após o golpe de 64. Protagonizaram movimentos sociais pelo direito à anistia em dois momentos da história brasileira (Estado Novo, 1945, e regime militar, 1979) como pontos principais para processos de redemocratização no Brasil na primeira e na segunda metade do século XX.

À esquerda das Forças Armadas brasileiras
Livro 3
Nas narrativas biográficas histórico-literárias de Fortunato Câmara de Oliveira, Rui Moreira Lima, João Evangelista Mendes da Rocha, Jacob Gorender, Miguel Alfredo Arraes de Alencar e Kardec Lemme encontramos militares de esquerda que foram lutar contra o nazifascismo na Segunda Guerra Mundial.
Fortunato e Rui contaram suas trajetórias de aviadores em dezenas de missões no campo de operações militares na Itália, condecorados como heróis da Força Aérea Brasileira (FAB). João Evangelista Mendes da Rocha e Miguel Alfredo Arraes de Alencar narraram a participação na Força Expedicionária Brasileira (FEB), entendida como grande marco em suas vidas, para pensar o que significava defender na prática a democracia ameaçada por regimes ditatoriais.
Jacob Gorender, líder estudantil comunista que se alistou na FEB, indicou a luta antinazifascista como divisor de águas em sua vida e na de muitos outros militares comunistas. Kardec Lemme, líder responsável por indicar para entrevistas a maior parte dos militares de esquerda, emerge com uma trajetória cotidiana de enfrentamento e de indignação perante o anticomunismo, o nazifascismo e os regimes autoritários brasileiros.
Eles passaram pela defesa da legalidade em diversos governos democráticos até serem humilhados, perseguidos, presos, torturados e julgados pela ditadura militar que se instaurou com o golpe de 1964. Narraram como refizeram suas trajetórias, de suas famílias e de seus amigos militares de esquerda, colaborando com os movimentos sociais pela conquista da anistia e pela redemocratização brasileira.

À esquerda das Forças Armadas brasileiras
Livro 4
No quarto livro da coleção, estão reunidas as últimas narrativas biográficas de militares de esquerda. Pedro Alvarez e Eduardo Chuay contaram como foram da carreira militar para a política, depois de eleitos como vereador e deputado por partidos de esquerda em momentos diferentes da história brasileira.
Wilson Fadul, médico e militar, refletiu sobre os acontecimentos políticos que o levaram de Ministro da Saúde do governo João Goulart a perseguido político pelos militares de direita no poder.
Carlos Joaquim Magalhães e Glauco Prado ressaltaram como posições nacionalistas e legalistas na Marinha foram consideradas de esquerda pela direita militar, prejudicando suas carreiras e sendo vítimas de perseguição política nas Forças Armadas.
Pedro Paulo de Albuquerque Suzano relatou como ele e sua família de militares legalistas e de esquerda sofreram prisões e processos promovidos pela ditadura militar. João Batista de Paula abordou como era complexa a trajetória de um militar que se tornou jornalista, encarando a censura dentro e fora das Forças Armadas.
Héctor Araújo, Deodoro Bugarin e Joacy Pereira Magalhães relataram como militares de baixas patentes e de posições legalistas e de esquerda sofreram perseguições, prisões, torturas durante a ditadura militar, o que levou o último deixar de ser sargento para tornar-se guerrilheiro em ações armadas contra o governo golpista.
Esses sujeitos históricos se reuniram, contaram suas histórias e trouxeram novos documentos, nos anos de 1990, na Associação Democrática e Nacionalista de Militares (ADNAM) para reconquistarem direitos políticos mais amplos e referentes à carreira militar, tendo em vista que foram cassados pelos Atos Institucionais e por outras ações arbitrárias dos governos militares. Além de mudarem a visão tradicional dos militares como grupo homogêneo de direita, à época das entrevistas, criticaram ferozmente o governo eleito de Fernando Henrique Cardoso, que consolidou algumas das primeiras políticas neoliberais no contexto pós-redemocratização, políticas essas que se ampliaram e seguem até os dias de hoje.

À esquerda das Forças Armadas brasileiras
Livro 5
Este último livro da coleção apresenta depoimentos curtos de militares de esquerda no filme Militares da Democracia (2014) e longas entrevistas com o cineasta e historiador Silvio Tendler e com o professor e historiador José Carlos Sebe Bom Meihy sobre suas vidas e processos de produção e de convívio colaborativo com outros pesquisadores em atividades artísticas, literárias, bem como de ensino, pesquisa e extensão com décadas de existência.
Esses testemunhos dialogam com artigos sobre diversas temáticas levantadas, criados como exercício diário de garantia da democracia pelas reflexões e práticas da cultura e de educação no ensino superior. Nesse sentido, destaca-se como as investigações iniciadas pelo historiador José Carlos Sebe Bom Meihy e pelo cineasta Silvio Tendler (mestres de gerações das historiadoras Andrea Paula S. O. Kamensky, Suzana L. S. Ribeiro e Caroline B. Silvério) materializam encontros intergeracionais.
Estes chegam aos estudantes de história da atualidade, representados por Felipe M. Dogue e Nicolas O. Cardoso, jovens pesquisadores que compõem a equipe de pesquisa e de apoio do trabalho ora apresentado. Encerrando o livro, o Posfácio, escrito por Andrea Paula S. O. Kamensky, faz um balanço dos trabalhos desenvolvidos no século XXI a partir da pesquisa com militares de esquerda realizada desde os anos de 1990. A historiadora aponta questões críticas a serem desdobradas em novos estudos urgentes no contexto de negacionismos e ameaças à frágil democracia brasileira, repleta de estruturas e práticas autoritárias, que necessitam ser conhecidas e transformadas.
Diante do exposto, mais que esgotar as temáticas propostas, À esquerda das Forças Armadas brasileiras: história de vida de militares perseguidos e anistiados políticos abre uma gama de possibilidades de compreensão do real e de novas perspectivas de trabalhos acadêmicos, literários e artísticos na contemporaneidade.
Antigas e novas gerações de pesquisadoras e pesquisadores enfrentam corajosamente os apagamentos e negacionismos históricos do século XXI. Trazem reflexões necessárias, referentes aos flagrantes retrocessos das conquistas e das lutas democráticas, que oportunamente são lembradas e reexaminadas nos debates, por ocasião dos sessenta anos do golpe militar (1964), quarenta e cinco anos da Lei de Anistia (1979) e quarenta anos das Diretas-Já (1984). O projeto foi contemplado pelo Programa de Ação Cultural do Estado de São Paulo ProAc), em 2023, na categoria Literatura Não Ficção.
Os cinco livros da coleção
À Esquerda das Forças Armadas Brasileiras é mais que uma coleção de livros: é uma ferramenta de resistência ao apagamento histórico e ao revisionismo autoritário. Por meio de narrativas emocionantes e rigorosamente documentadas, a obra ilumina aspectos negligenciados da história brasileira, como a pluralidade ideológica nas Forças Armadas e a luta por justiça e memória.
Com a proximidade de marcos históricos, como os 60 anos do golpe militar de 1964, os 45 anos da Lei de Anistia e os 40 anos das Diretas Já, esta coleção surge como leitura essencial para compreender as lutas e retrocessos da democracia brasileira.
O projeto foi contemplado pelo Programa de Ação Cultural do Estado de São Paulo (ProAc), em 2023, na categoria Literatura Não Ficção.
Autores

José Carlos Sebe Bom Meihy e Silvio Tendler
